sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Ainda sobre o e-book

«Éramos seis naquela mesa redonda. Editores, romancistas, críticos literários, consultores. Tema da conversa: «Vem aí o e-book… Deito fora os meus livros?» Como se o facto de podermos trazer centenas de romances num aparelho fininho implicasse necessariamente uma guia de marcha para as estantes lá de casa. Quando me deram a palavra, pousei no colo os váriosgadgets pelos quais distribuo as minhas leituras digitais (Kindle, iPad e iPhone), o que me fez sentir uma espécie de José Magalhães nos seus tempos de guru da pré-história da internet em Portugal (lembram-se?), e sublinhei uma evidência: o e-book não vai assassinar o livro em papel (pelo menos nas próximas décadas), nem substituir a experiência da leitura tradicional. Mas os dois suportes podem perfeitamente coexistir, com as respectivas vantagens e limitações. Pela minha parte, a adaptação foi imediata e leio agora e-booksnaturalmente, como se eles sempre tivessem existido. Uma das vantagens, para além de os poder descarregar no próprio instante em que estão a ser lançados nos EUA ou no Reino Unido, é o acesso instantâneo ao dicionário de inglês, ao Google e à Wikipedia. Basta carregar na palavra que nos suscita dúvidas e a definição correspondente aparece na base do ecrã (ou o link para os sites referidos). E uma pessoa habitua-se tão depressa que já me aconteceu, ao ler livros em papel, sentir o impulso de carregar numa palavra que desconheço ou no nome de alguém que gostaria de pesquisar.
No debate, havia quem estivesse disponível para experimentar, mas também quem jurasse a pés juntos que desta água não há-de beber. O discurso típico de quem só vê na emergência do digital os seus perigos (que existem, entre eles o da rápida obsolescência tecnológica) mas nenhuma das suas virtudes. A questão, porém, é que os e-books não são uma fantasia futurista. Eles são a realidade de hoje. Ou, para os mais renitentes, de amanhã. Foi aliás muito curiosa a resposta que obtive à pergunta: «Mas algum de vocês já leu um e-book?» Pois. Nenhum dos outros cinco participantes no debate tinha alguma vez lido um e-book. Ou seja, estiveram duas horas a falar de uma coisa que nunca experimentaram. Daqui a um ano ou dois, acreditem, a proporção vai inverter-se. Recordam-se da resistência inicial aos telemóveis? Alguns dos que se riam da hipótese de vir a andar com um aparelhómetro colado ao ouvido, que horror, agora não prescindem dos modelos de última geração, com internet e tudo. Mais: daqui a vinte anos o título do debate («Vem aí o e-book… Deito fora os meus livros?») vai parecer tão anacrónico como um debate que há vinte anos tivesse discutido «Vem aí o e-mail… Deito fora os meus postais?».

Parte do preconceito contra o livro digital nasce do facto de muita gente pensar que este é um mero clone dos livros em papel. Nada mais errado. Embora ainda só estejamos no início, já começam a aparecer livros-aplicação (a pensar nos tablets) que levam a literatura digital para outros patamares. Veja-se o caso da versão para iPad do poema The Waste Land, de T. S. Eliot, nascida da parceria entre uma editora de vanguarda tecnológica (a Touch Press) e a prestigiadíssima Faber & Faber (detentora dos direitos). O resultado é avassalador. Além dos versos, com as anotações de Eliot integradas, podemos ver em sincronia a interpretação do poema pela actriz Fiona Shaw, registos áudio de outras leituras (Ted Hughes, Viggo Mortensen, o próprio Eliot), vídeos com comentários de várias personalidades (de Jeanette Winterson a Seamus Heaney) e imagens da versão original com notas manuscritas de Ezra Pound. No momento em que escrevo, acabo de comprar outra aplicação igualmente espantosa: a «edição amplificada» do On the Road, de Jack Kerouac (Penguin), com mapas das suas viagens pelos EUA, biografias dos escritores da Beat Generation, documentos de arquivo, comparações entre rascunhos e versão definitiva, capas das edições internacionais (incluindo a da Ulisseia), etc. Já imaginaram o que se pode fazer com o Ulisses, com a Divina Comédia, com os livros do Pynchon, com os do Georges Perec? As possibilidades são infinitas. E eu mal vejo a hora de as poder desfrutar.»
José Mário Silva 
tirado daqui

[Texto publicado no n.º 104 da revista Ler]

Sem comentários:

Enviar um comentário